segunda-feira, 8 de novembro de 2021

cada nova perda presentifica as perdas passadas

No banho vejo pelo meu reflexo no espelho a água acalmando os cabelos emaranhados, escorrendo pelo corpo, esfriando e relaxando meu ser agitado. Organizando meu eu bagunçado. Gosto da organização das coisas, a água organiza o corpo para mais um recomeço, assim como as lágrimas organizam e desatam os nós da garganta, deixando as linhas do corpo fluir para sentir novamente. Sinto um amor por organizar interiores de guarda-roupas, pelo processo de separar o que já nos ofereceu o que tinha pra oferecer, dobrar, consertar, limpar e reencontrar o que já pensava estar esquecido. E não gosto de fazer isso só comigo, já arrumei guarda-roupas com minhas amigas que, por um término de relacionamento ou por falta de espaço, precisaram passar por esse processo. Quando encontrei a Marie Kondo com seu método de organização com base no que nos traz alegria, senti que tinha mais alguém no mundo como eu. Só que há quase dois anos a vida virou pelo avesso e eu já não sei por onde começar a organizar os afetos, até meu guarda-roupas sinto que não consigo organizar. Foram tantas perdas desde então que ainda me sinto perdida e assustada. Perdi pacientes, o tio João, ídolos, conhecidos e a liberdade. Vi e acolhi muita gente que perdeu gente. Passei por um período de solidão extrema. Meu corpo não digeriu e a barreira que me mantinha em equilíbrio foi rompida e no último abril eu caí. Passei meses buscando ajuda para compreender o que estava acontecendo com meu corpo que parecia que a qualquer momento iria implodir. Após alguns desencontros dentro do meu corpo-casa bagunçado, concluí que estou com alergia ao mundo, o contato tem me adoecido e as minhas vias de encontro estão bloqueadas: a pele, as vísceras e a respiração. Meu mundo está mais restrito, nem tudo sou mais capaz de processar, a pele perfumada, a poeira dos móveis, um pratinho de fim de festa de aniversário ou perder alguém podem me fazer despencar. A imunoterapia tem sido a minha faxina interna, colocando cada sentir em seu lugar, quem sabe assim um dia eu possa voltar a lidar com o mundo de forma plena, mas por enquanto eu preciso ir devagar, exercitando a paciência com meu corpo que já não pode se alimentar de comida e afeto livremente ou fazer aquelas grandes faxinas do lado de fora. Por ora, a organização é interna.

p.s.: escrevo para organizar a dor.